Entre canoas e partituras


Duas noites por semana, às segundas e quintas, o som das ondas na praia do Campeche, em Florianópolis (SC), ganha o acompanhamento de acordes de instrumentos de sopro – flautas, trompetes, clarinetes, saxofones, tubas. São as aulas de música que há três anos acontecem no rancho de pesca de Getúlio Manoel Inácio, 61 anos, figura conhecida do bairro. Alguns anos depois de se aposentar como músico da Base Aérea, em 1998, ele começou a amadurecer o desejo de compartilhar seu conhecimento. Para fundamentar o trabalho que planejava desenvolver, cursou pedagogia na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Só depois de formado colocou em prática a ideia de transformar o rancho que foi de seu pai em espaço comunitário. O galpão é uma construção rústica, de madeira, com aproximadamente 100 metros quadrados, que guarda duas embarcações. E virou escola de música em 2009, quando Getúlio conseguiu angariar instrumentos e materiais graças às doações de amigos. Na época, apareceram 58 interessados, de todas as idades. Ficou definido, então, que oito anos seria o limite mínimo. Em contrapartida, não há idade máxima – Getúlio sabe que a troca de experiências entre gerações é enriquecedora. Hoje, 40 alunos – metade deles crianças e adolescentes – frequentam a escola. São três turmas, uma para cada nível: avançado, médio e iniciante. Getúlio dá aulas para o avançado e dois ex-colegas militares cuidam das outras.
Um dos alunos veteranos, que está desde o início do projeto, é Robert Liberato Braz, 13 anos. Em abril, ele enfrentou o primeiro grande desafio público: executou “Yesterday”, dos Beatles, em uma festa na igreja. “Pelo menos o pessoal conseguiu adivinhar que música eu toquei”, brinca. O instrumento do rapaz é o clarinete, escolhido após experiências com o trompete e o saxofone. “A gente vai testando até perceber a maior afinidade do aluno”, descreve Almir Martins, 53 anos, um dos professores. Por enquanto, só há aulas de instrumentos de sopro, a especialidade do fundador.
O projeto é também uma oportunidade para estreitar o convívio familiar. A professora Márcia Regina da Silveira e Silva frequenta as aulas há um ano e meio ao lado dos filhos Vitor, 12 anos, e Carolina, 10. Enquanto Márcia toca clarinete, Vitor está aprendendo trompete e Carolina escolheu a flauta transversal. Ney, o pai, não tem tempo de ir às aulas, mas sabe tocar teclado e participa dos ensaios em casa. “A música nos uniu ainda mais”, descreve Márcia. As crianças não sabem se vão seguir essa carreira – e, na realidade, não estão preocupadas com o assunto. “Eu gosto de aprender a tocar porque é divertido. Só isso”, diz Carolina.
A escola é gratuita e o trabalho de Getúlio e dos demais instrutores não é remunerado. Os custos são bancados por Getúlio, com contribuições da associação de pescadores, de moradores e de estabelecimentos comerciais do bairro. Órgãos oficiais de cultura ajudam pontualmente. “Gasto cerca de R$ 600 por mês de manutenção. E há custos inesperados, como a quebra de algum instrumento”, diz. E por que eles fazem tudo isso?
Simples: para preservar a cultura local. Getúlio acredita que a união dos moradores é a única maneira de impor obstáculos à especulação imobiliária que tenta fazer do Campeche, uma das praias mais intocadas dali, um “point”do verão. “Essas crianças já se tornam íntimas das nossas tradições pelo simples fato de estarem em um rancho de pesca, ao lado de uma canoa de garapuvu”, diz. Ele está se referindo à embarcação quase centenária herdada do pai, com 11 metros de comprimento e talhada em um tronco da árvore-símbolo da cidade, que tem de ser empurrada para um canto do galpão a cada aula.
Falecido há 20 anos, Manoel Rafael Inácio, o Deca, pai de Getúlio, era um pescador que tocava sanfona nas festas dos aviadores franceses que, entre as décadas de 1920 e 1930, faziam escala no campo de pouso do Campeche. Na época, um dos responsáveis pela linha do correio entre Paris e Buenos Aires era o futuro escritor Antoine de Saint-Exupéry, autor de O Pequeno Príncipe (nome da principal avenida do bairro). Deca se tornou amigo de Exupéry, a quem chamava “Zé Perrí”. “Papai vivia contando as histórias desse tempo e me sinto na obrigação de preservar a memória.”
As aulas inspiram outras manifestações culturais. Uma noite por mês, o local se transforma no Cineclube Dona Chica, nome da falecida mãe de Getúlio. Há ainda oficinas de capoeira e ele planeja oferecer aulas de viola – só falta um instrutor. “As dificuldades são muitas, mas as recompensas são maiores”, diz, ao final de mais uma aula. Em seguida, todos – adultos, crianças, professores, alunos, homens, mulheres – recolhem as cadeiras e empurram a gigantesca canoa de volta ao seu lugar de direito.
Luis Prates
Robert Braz (à esq.), um dos veteranos do rancho de pesca, escolheu o clarinete. Getúlio (acima, durante uma aula) conta com o suporte da comunidade para manter o projeto

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