Sacanagem de mãe



Ilustração Daniel Lourenço
Estávamos os quatro na fila no supermercado. “Papai, a mamãe está de sacanagem comigo.” A senhora da frente estalou os olhos em mim numa gargalhada nervosa. Eu sorri e falei: “Novos tempos!”. Meu filho fala para o pai que sua mãe está de sacanagem com ele. Pedro sabe que não é exatamente uma coisa bonita de se dizer na fila do mercado, mas as expressões desse tipo andam liberadas lá em casa. Um palavrão respeitoso, eu diria. Podemos xingar com os mais cabeludos o pé da mesa numa topada, o trânsito de São Paulo, mas jamais uns aos outros. Nossa língua é liberada, dentro dos limites do afeto. Intimidade pode ser uma delícia quando sinônimo de cumplicidade e algo terrível quando se perde limites.
Confesso que tive imenso prazer com a cena do mercado. Faço parte de uma geração de pais que fizeram de tudo para melhorar a comunicação com os filhos. Vejo por meus amigos, que nosso maior querer, desde nossos bebezinhos nos braços, era essa relação direta, em que se pudesse falar tudo, explicar o que foi perguntado com todas as letras numa disposição sincera ao jogo aberto. Nada de palmadas ou “fica bonzinho” ou “isto não é assunto pra criança”. Pagamos um preço alto por isso, bem sabemos. Um jogo de xadrez eterno de tomar lá e dar cá com muitos xeque-mates. Palavras dão mais trabalho que palmadas. Encerrar o assunto é fácil, difícil é chegar a um acordo. Cortamos um dobrado, é verdade, mas ganhamos pérolas de nossos filhos que não ousávamos falar aos nossos pais. E vale a pena.
Pedro tem a língua afiadíssima. Me lembro que, ainda muito pequenininho, ele me disse: “Mamãe, você está falando desse jeito porque está nervosa com o seu trabalho e não comigo”. Fiquei chocada, mas aprendi muito com ele. É um sensível detector de tons de voz e te pega no pulo numa mentira. É dele a máxima: “Quando uma criança telefona pra alguém pra dar parabéns é óbvio que a pessoa sabe que é porque a mãe mandou”. Minha reclamação do tom preguiçoso com o aniversário da tia ficou perdida em reticências. E dá-lhe conversa. E dá-lhe retórica para tentar explicar também a relatividade das coisas, o inexplicável do mundo, as estranhas leis sociais. Não há assunto proibido para nós, somos pais liberais. Mas para eles há, é curioso. Acho que tive a ilusão de que falando abertamente com meus filhos eles fariam sempre o mesmo comigo. Esqueci do direito deles ao silêncio, à privacidade, à mera tentativa de digerir coisas sozinhos. Esqueci que por mais que eu tente ser amiga deles, jamais deixarei de ser a mãe deles. Perguntas da mamãe sobre as meninas da escola, por exemplo, são respondidas com um olhar que diz “isso não é assunto para pais.” Se, por acaso, na volta do supermercado, eu perguntasse ao Pedro o significado da palavra sacanagem, provavelmente ele diria: “Mamãe, fica boazinha”.

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