Quando a mania passa do limite



Fotomontagem: Jutta Klee/Corbis e shutterstock
Organizar os próprios brinquedos, o material escolar e até os sapatos. Quem não gostaria que o filho fizesse tudo isso sem precisar ficar pedindo? Joana*, como qualquer outra mãe ou pai, elogiava Lucas*, 5 anos, por esse comportamento. E o mesmo acontecia na escola: era citado como um aluno exemplar nas reuniões de pais. “Me sentia orgulhosa”, afirma. Mas essa mania passou a ser frequente, e intensa. Ele ficava horas enfileirando os carrinhos – são cerca de 80 – simetricamente. Um tinha que estar do lado do outro, senão, recomeçava. Não era uma brincadeira. “Comecei a perceber que ele fazia tudo igual a mim”, afirma. Joana tem o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Mas ele não estaria imitando a mãe? Ou não seria apenas uma mania?
“Repetir o comportamento de alguém não causa TOC, e manias não fazem com que a criança passe horas realizando a mesma atividade todos os dias”, afirma Maria Conceição do Rosário, uma das psiquiatras mais renomadas do país em TOC na infância, professora da Universidade Federal de São Paulo. É o extremo, o excesso, o exagero. Tudo bem seu filho arrumar os carrinhos e não deixar que ninguém mexa na coleção – mas ele vai brincar com eles, chamar um colega para apostar corridas, levar na escola. A criança com TOC quer alinhá-los e, com o tempo, evita chamar os amigos em casa ou ir na deles porque não quer correr o risco de que a ordem seja quebrada. E isso se repete em outras situações.
Querer lavar várias vezes as mãos para mexer com água pode ser uma brincadeira, mas não conseguir se sentar à mesa para comer se não tiver com as mãos limpas, não. Chamar você algumas vezes porque quer alguma coisa é normal, mas repetir uma mesma palavra por 30 minutos, não. É OK apagar a lição de casa para que a letra ou o desenho fique mais bonito, mas não entregar no prazo porque apagou tanto por achar que não estava perfeito é um alerta.
Esses sinais de que a criança pode desenvolver a doença surgem aos 2 ou 3 anos – em cerca de 50% dos casos de TOC em adultos, mostram as pesquisas, os sintomas apareceram até os 14 anos. Com Lucas foi assim. No ano passado, quando o comportamento repetitivo ficou mais evidente, Joana procurou ajuda. E foi constatado: ele tem predisposição para o distúrbio. Desde então, ele entrou para um estudo pioneiro no mundo, que está sendo realizado no Hospital das Clínicas em São Paulo, sobre TOC e hereditariedade.
Todos os pacientes selecionados têm predisposição e um dos pais ou irmão com ansiedade (considerado um fator de risco) ou TOC – quando um parente de primeiro grau tem o distúrbio, a criança tem 11 vezes mais chance de desenvolvê-lo. O grupo, composto por 60 crianças e adolescentes de 3 a 17 anos, será estudado por um ano. Metade vai ser observado. Os pais da outra parte serão “treinados” para lidar com os sintomas do filho. “Queremos saber se a intervenção precoce, antes do diagnóstico final, faz com que esse paciente não desenvolva a doença ou, se a tiver, não sofra tantos prejuízos”, afirma Priscila Chacon, psicóloga, coordenadora da pesquisa e pós-graduanda do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). Hoje, apesar das crianças já receberem acompanhamento, não existem provas científicas de que a intervenção precoce tenha algum resultado prático.
Mas vale o alerta: qualquer sinal de que aquela mania está passando do limite deve ser investigado. Além de falar com o pediatra, é recomendável que a criança passe por uma avaliação com um psicólogo formado em terapia cognitiva-comportamental ou com um psiquiatra infantil. “Mesmo quadros leves precisam de tratamento porque, sem acompanhamento, podem se tornar muito graves. O TOC não afeta a inteligência nem o grau de consciência, mas pode limitar muito a vida da criança”, afirma Maria Conceição.
Por que com meu filho?
Não se sabe por que algumas pessoas vão desenvolver o TOC e outras não, mas é certo que não existe um único fator responsável pelo distúrbio e sim uma soma de vários componentes, como a hereditariedade, fatores ambientais (baixo peso ao nascer e complicações no parto, por exemplo), neurobiológicos (como passar por um evento traumático) e até causas desconhecidas. Felizmente, os critérios para fazer o diagnóstico estão estabelecidos.
O primeiro é a frequência. A criança tem que passar pelo menos uma hora por dia, não necessariamente consecutiva, realizando aquela atividade, sem conseguir se controlar. O segundo é o incômodo que causa, como ansiedade e angústia. O terceiro é a interferência que provoca na vida dela ou da família. Por exemplo: se tem medo de ser contaminada por tocar em um objeto, vai deixar de frequentar espaços de lazer. “Algumas deixam de ir à escola e passam até 16 horas, em quadros mais graves, fazendo os rituais”, afirma Priscila. E não precisa ser sempre o mesmo comportamento. É mais comum que a mania mude com o tempo.
Além disso, o transtorno gera obsessão (impulsos, pensamentos e imagens desagradáveis) e/ou compulsão (comportamento para evitar algo). “Ela precisa realizar o ritual para deixar de sentir angústia, ansiedade e se livrar daqueles pensamentos. Mas esse alívio é momentâneo, então ela repete várias vezes”, afirma Guilherme Vanoni Polanczyk, professor do departamento de psiquiatria do HC/FMUSP e um dos coordenadores do livro Psiquiatria da Infância e Adolescência (Ed. Manole), lançado este ano. Em alguns casos, a criança acredita que, se não fizer aquela atividade, como sentar e levantar da cadeira várias vezes, algo ruim vai acontecer.
André*, desde pequeno, gostava de manter tudo limpo. A mãe, Beatriz*, nunca precisou pedir para que lavasse as mãos antes das refeições. Mas aos 12 anos ele teve o que a mãe chama de surto. “Ele me disse que não podia tocar na maçaneta porque tinha medo de se contaminar”, afirma. Começou então uma peregrinação por pediatras, psicólogos, terapeutas e neurologistas. Tudo em vão. Os médicos estimam que os pais de crianças com TOC podem levar anos da descoberta do sintoma até a primeira consulta com um especialista por uma série de motivos. “Os residentes em pediatria estudam muito pouco sobre saúde mental na infância, então existe essa dificuldade de fazer o diagnóstico em consultório. A criança que tem TOC não fala sobre o que sente, porque acha estranho e teme ser punida. Outro problema é aceitar que o filho tem o distúrbio e procurar um especialista em saúde mental, o que ainda é visto com muito preconceito”, afirma Polanczyk.
Ele coordena o Programa de Diagnóstico e Intervenções Precoces da USP, um serviço de psiquiatria em que crianças de 2 a 6 anos com alguma suspeita são avaliadas e recebem um encaminhamento, e também é responsável por dois trabalhos que visam encurtar o percurso do paciente por ajuda: um com pediatras e psiquiatras, para mantê-los abastecidos de informações sobre doenças psiquiátricas na infância, e outro com escolas, para que os professores fiquem alertas a comportamentos diferentes.
O diagnóstico de André, hoje com 20 anos, aconteceu há apenas quatro. A mania por limpeza se estendeu para fora de casa. Ele não pegava ônibus, não frequentava a casa dos colegas. Também deixou de pronunciar algumas palavras e apertar algumas teclas do videogame por medo que algo acontecesse. Em dois anos de terapia, ele conseguiu ter controle sobre a doença, sair de casa e prestar vestibular. Mas ele não passou, e alguns sintomas voltaram. Essa, aliás, é mais uma característica do transtorno: não há cura. A pessoa pode passar anos bem e, de repente, ter uma recaída. “Grandes mudanças, como trocar de casa, entrar para o ensino fundamental ou a morte de um parente próximo podem desencadear o distúrbio”, afirma Luciano Isolan, psiquiatra, mestre em psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador do Programa de Transtornos de Ansiedade do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS). Mas a terapia, que pode ou não incluir medicamentos – vai depender de cada caso –, faz com que a pessoa esteja preparada para lidar com a crise. “Quando ela é capaz de identificar o problema, suporta aquele momento ruim e, se não consegue sozinha, sabe pedir ajuda”, afirma.
Ajuda dentro de casa
Se o acompanhamento por um especialista é fundamental, o mesmo pode ser dito sobre a participação dos pais. Entrar em grupos de apoio, como a Associação Brasileira de Síndrome de Tourette, Tiques e Transtorno Obsessivo Compulsivo (astoc.org.br) ou a Associação dos Amigos, Familiares e Portadores de Transtornos de Ansiedade (asportas.org.br), ajuda a compreender que seu filho não é o único. A partir daí, fica mais fácil lidar com a situação. Uma estratégia é interferir nos rituais, e evitar que ele se perpetue sem que cause prejuízo à criança. “Um casal que tratei, cujo filho não queria que as roupas dele fossem lavadas com as dos demais familiares, comprou uma segunda máquina de lavar. Isso não ajuda – na verdade, pode piorar”, conta a psiquiatra Maria Conceição.
Quando você quebra o padrão com sutileza, a criança percebe que nada ruim acontece e, aos poucos, o TOC deixa de ser o foco central do dia a dia. Outra recomendação é incentivar seu filho a correr riscos seguros, como aprender a andar de bicicleta – e a se levantar quando cair. Voar sem medo, e com segurança, é uma lição para toda a vida.

Tique é TOC?
Não, mas cerca de 30% dos pacientes com o transtorno obssessivo-compulsivo vão ter tiques também, um comportamento involuntário e repetitivo que pode envolver um ou vários grupos musculares (como piscar os olhos muitas vezes ou pigarrear).
Diferentemente do TOC, o tique pode ser transitório e não há pensamentos associados no momento em que o ato está ocorrendo. O tratamento é focado nos sintomas e nas situações que contribuem para a manutenção ou piora desse comportamento.



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